Em 25.04.2023, foi publicada a decisão no processo administrativo (“PA”) n. 19957.002748/2023-71, da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), que traz luz aos conflitos societários em que se discute a suspensão dos direitos políticos de voto dos acionistas, quando supostamente agiram com abuso de direito e em prejuízo as atividades sociais da companhia.
Sobre a matéria, a Lei 6.44/1976 (“LSA”) prevê (i) em seu artigo 120, a possibilidade da suspensão, pela Assembleia Geral, de direitos do acionista, desde que preenchidos os requisitos citados no próprio corpo legal; e (ii) em seu artigo 109, traz o rol de direitos essenciais, traduzidos como aqueles que nem o estatuto e nem a assembleia geral podem suprir, ainda que temporariamente. Assim, se considerarmos que os direitos políticos, embora não definidos na LSA, não englobam quaisquer dos direitos elencados no mencionado art. 109, em tese, seria possível sua suspensão por deliberação assembleiar.
No caso, se versa sobre o pedido de interrupção do curso do prazo de antecedência da convocação de Assembleia Geral Extraordinária (“AGE”) da Gafisa S.A. (“Gafisa” ou “Companhia”), convocada para 28.04.2023, formulado pelo acionista ESH Theta Fundo de Investimento Multimercado (“Requerente”), em que se constava, dentre outros, a seguinte ordem do dia:
“a. aprovação da propositura de ação de responsabilidade em decorrência dos prejuízos causados à Companhia na operação de aquisição da Bait Inc., em face de alguns administradores;
b. aprovação da propositura de ação de responsabilidade em decorrência dos prejuízos causados na operação de alienação do Hotel Fasano, em face de alguns administradores;
d. aprovação da propositura de ação indenizatória por abuso de direito em face do Requerente; e
e. aprovação da suspensão dos direitos políticos do acionista ESH THETA FUNDO DE INVESTIMENTO MULTIMERCADO, na forma do art. 120 da Lei nº 6.404/76, em razão de sua conduta em abuso de direito.”.
A proposta da administração para a AGE contém detalhes acerca dos pedidos, destacando-se para fins de análise do requerimento em tela, as seguintes informações:
“(i) os pedidos de inclusão de pauta referentes à propositura de ações de responsabilidade em face de determinados administradores foram protocolados pelo Requerente, com base em supostos prejuízos decorrentes de negócios celebrados pela Companhia;
(ii) a administração da Companhia entende que os pedidos derivam de acusações inverídicas proferidas pelo Requerente, o que seria uma prática reiterada, conforme ocorrido em pedidos semelhantes em assembleias anteriores; e
(iii) o pedido de inclusão de matéria acerca da suspensão dos direitos políticos foi apresentado pelo acionista Estocolmo Fundo de Investimento Multimercado Crédito Privado (“Fundo Estocolmo”), com base na alegação de que a “conduta adotada pelo Requerente teria afetado negativamente a Companhia, prejudicando o seu posicionamento comercial, a estabilidade jurídica de transações realizadas, e a sua capacidade de financiamento junto a acionistas e terceiros”.
Assim foi que, em 03.04.2023, o Requerente apresentou pedido de interrupção do curso do prazo de convocação da AGE, por até 15 (quinze) dias, a fim de que a CVM analisasse seu questionamento de que seria ilegal o pedido de inclusão, por parte do Fundo Estocolmo, de deliberação acerca da suspensão dos direitos políticos atrelados às suas ações.
Dentre outras alegações, segundo o Requerente, o pedido de suspensão apresentado não encontra respaldo jurídico na LSA, uma vez que, na sua visão: (i) o mencionado dispositivo legal prevê a possibilidade de restrição de direitos políticos somente em casos nos quais resta claro o descumprimento de uma obrigação imposta por lei ou pelo estatuto social. E, no caso, o pedido sequer teria demonstrado o fundamento específico que deflagraria o suposto descumprimento, se limitando a indicar, de forma imprecisa, um eventual abuso de direito; (ii) as condutas supostamente atribuídas ao Requerente já teriam ocorrido, o que afastaria a aplicação da regra, pois não se admite a suspensão de direitos políticos com base em fatos pretéritos; e (iii) a possibilidade prevista no art. 120 não pode ser usada como forma de solucionar conflitos entre acionistas, conforme entendimento apresentado em precedente da CVM.
Convidada a se manifestar, a Companhia encaminhou as informações apresentadas pelo Fundo Estocolmo acerca da deliberação por ele solicitada, nos seguintes termos principais:
“(i) o Requerente tem abusado das prerrogativas conferidas pela LSA, notadamente o direito ao chamamento de assembleias gerais extraordinárias com o único intuito de satisfazer os interesses persecutórios de seu gestor;
(ii) a redação do art. 120 da LSA não limitaria a aplicação do vocábulo “lei”, sendo que o descumprimento de dispositivos legais estranhos à lei societária, quando associados à conduta do acionista, poderia ser invocado para fins da suspensão de direitos; e
(iii) no caso concreto, o Requerente se enquadraria à figura do abuso de direito, previsto no art. 187 da Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”). Assim, o exercício, pelo Requerente, das prerrogativas conferidas pela alínea “c” do art. 123 da LSA e pelo art. 37 da Resolução CVM 81/2022, quando analisadas sob o prisma do art. 187 do Código Civil, se caracterizam como flagrantes condutas abusivas, em prejuízo dos interesses legítimos dos demais acionistas, da própria Companhia e de seus administradores.”
A matéria foi objeto da análise pela Superintendência de Relações com Empresas (“SEP”), que emitiu o Parecer Técnico nº 31/2023-CVM/SEP/GEA-3, o qual serviu de norte para a decisão do órgão autorregulador do mercado de capitais.
Em síntese, a CVM entendeu que o descumprimento de obrigação legal ou estatutária, que embasaria a utilização das prerrogativas trazidas pelo art. 120 da LSA, precisa estar identificado no edital de convocação e na proposta da administração, o que o Fundo Estocolmo não logrou êxito em comprovar.
Para mais, se destaca na decisão que “a suspensão dos direitos políticos teve origem na intenção de forçar o cumprimento de uma obrigação e não o de ser instrumento de solução de conflitos em geral […]. Nesse contexto, por interferir de maneira relevante na esfera dos direitos do acionista, tal instituto não pode ser indiscriminadamente utilizado, devendo ser respeitados os limites legais e, sobretudo, ser investigadas quais obrigações, quando descumpridas, ensejariam a possibilidade de aplicação da referida suspensão”.
Outro ponto importante que foi mencionado diz respeito a afirmação apresentada pelo Fundo Estocolmo de que o Requerente teria descumprido o art. 187 do Código Civil, o que, no entendimento da área técnica, não é suficiente para as pretensões de suspensão dos direitos de acionista, notadamente por ser um descumprimento pretérito, não passível, portanto, de cessação a posteriori, conforme exigido pelo citado art. 120. Do contrário, tal sanção se prolongaria indefinidamente no tempo, em função da impossibilidade de cessação, o que não pode ocorrer.
Em seu voto, a Diretora Flávia Perlingeiro ponderou que “a suspensão de direitos com base em conceito jurídico indeterminado, de análise subjetiva, como se daria na hipótese de abuso de direito, acarretaria expressiva insegurança jurídica, bem como tenderia a inibir o legítimo exercício do direito essencial dos acionistas de fiscalizar a gestão dos negócios sociais”. Pontuou, ainda, que, “da forma como colocado, sem um descumprimento específico e objetivamente verificável, o modo de cessação como remédio para purgar a mora e reestabelecer os direitos do acionista atingido, restaria praticamente indefinido, inclusive potencialmente frustrando o exercício do referido direito essencial de fiscalização, […] em clara dissonância com o arcabouço jurídico-societário”.
O Presidente João Pedro Nascimento e os Diretores Alexandre Rangel e João Accioly também acompanharam os fundamentos e conclusões da SEP, bem como a manifestação da Diretora Flávia Perlingeiro. De igual modo, seguiu o Diretor Otto Lobo, reiterando que, ao estabelecer que a suspensão do exercício de direitos do acionista deve cessar “logo que cumprida a obrigação”, o art. 120 vedou a utilização de eventos pretéritos para fundamentar a suspensão, na medida em que não é possível que a suspensão perdure ad aeternum. Por fim, apontou que, no caso ora analisado, a suspensão violaria o direito essencial do referido acionista de fiscalizar a gestão dos negócios sociais, consoante previsto no art. 109, III, da LSA.
Pelo exposto, considerando a natureza sancionatória da norma contida no art. 120 da LSA, de efeitos significativamente relevantes na esfera dos direitos dos acionistas, concluiu que sua aplicação requer cautela máxima, daí que ilegal a proposta de deliberação da suspensão dos direitos políticos do Requerente na AGE.