Com a aprovação, no último dia 26/04/2022, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei (“PL”) nº2303/15, convertido no PL nº 4401/2021, a chamada “Lei do Bitcoin”, agora pendente de julgamento pela Câmara dos Deputados, deu-se mais evidência ao tema, já tão comentado, das criptomoedas, moedas digitais e virtuais (em conjunto, “Criptoativos”).
Com o ensejo, esse artigo trata do Ofício Circular SEI nº 4081/2020/ME, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (“DREI”), que se manifestou de forma favorável à utilização de Criptoativos como meios de pagamento de operações societárias e integralização de capital social em todo o país, após provocação da Junta Comercial do Estado de São Paulo (“JUCESP”), dentre os quais levantou-se, à época, os seguintes questionamentos:
I – Qual seria a natureza jurídica das criptomoedas: (1) uma moeda, (1) um valor mobiliário, (1) um bem incorpóreo, este com ou sem valor econômico?
II – Haveria vedação legal para integralização de capital com criptomoedas?
III – Quais as formalidades que as Juntas Comerciais devem observar, para fins de operacionalizar o registro dos atos societários que eventualmente envolverem o uso de criptomoedas?
O DREI se posicionou no sentido de que criptomoedas são bens incorpóreos suscetíveis de avaliação econômica, negociáveis e com utilização diversa. Em igual sentido, o Banco Central do Brasil já havia emitido comunicado no qual afirmou que os Criptoativos não se confundem com as chamadas moedas eletrônicas, reguladas na Lei 12.865/2013, configurada sua natureza de bens.
O órgão também apresentou opinião favorável à legalidade da integralização de capital com Criptoativos, reafirmando que inexiste vedação expressa na legislação, tanto no Código Civil , quanto na Lei das Sociedades Anônimas, bem como sua consonância com a Lei de Liberdade Econômico.
Em relação ao último questionamento posto pela JUCESP, que diz respeito a eventual formalidade especial para admissão desses bens, o ofício aduz que se lhes aplicam as mesmas regras pertinentes à integralização de bens móveis, conforme respectivo ato societário, limitando-se as Juntas ao exame de cumprimento de formalidades legais.
Nesse ponto, podemos anteceder alguns desafios. É que, conforme preconiza Marlon Tomazette (2017),“nas sociedades em geral, o capital social é formado pela soma das contribuições dos sócios, que são destinadas à realização do objeto social e representa aquele patrimônio inicial, indispensável para o início das atividades sociais. O capital cumpriria três funções básicas: a função de produtividade, a função de garantia e a função de determinação da posição do sócio. (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário. V. 1. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2017.). Mais do que isso, assenta-se na ideia da limitação da responsabilidade do quotista ou acionista perante terceiros.
Assim, ainda que já tenha havido um posicionamento favorável à utilização dos mesmos para a integralização do capital social, parece haver grande obstáculo prático à sua utilização como contribuição juridicamente válida de um sócio/acionista à sociedade.
Isso porque, no atinente às sociedades empresárias limitadas, dispõe o artigo 1.055 do Código Civil que os seus sócios responderão solidariamente pela exata estimação de bens conferidos ao capital social, até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade na Junta Comercial.
Já com relação às sociedades anônimas, a Lei 6.404/1976, no artigo 7º, preleciona que o capital social poderá ser formado em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro, a ser realizada por três peritos ou por empresa especializada, cujo laudo deverá ser fundamentado, com a indicação dos critérios de avaliação e dos elementos de comparação adotados e instruído com os documentos relativos aos bens avaliados, a ser aprovado pela assembleia geral e posteriormente aceito pelo acionista que pretende realizar a integralização.
Para mais, ensina Modesto Carvalhosa que “não se pode, com efeito, conceber a conferência de bens que não tenham uma função de produtividade e, portanto, de instrumento de realização dos fins empresariais da companhia, enunciados em seu objeto social. Daí decorre que não se pode admitir a entrada de qualquer bem para a conta de capital que não tenha uma utilidade efetiva e concreta para a empresa. (…) Desse modo, a formação do capital com contribuições em bens não relacionados com a realização do objeto social não pode ser admitida” (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, v. 1, pp. 59 e 60).
Ora, os Criptoativos são ativos virtuais, protegidos por criptografia presentes exclusivamente em registros eletrônicos, cujas operações são executadas e armazenadas em uma rede de computadores. Possuem expressiva volatilidade de preços e, para além, a falta de informações no mercado, indubitavelmente, dificulta essa mensuração. Nesse cenário, a expertise necessária para uma justa precificação e a definição de um método de avaliação adequado apresenta-se bastante complexa.
Outra consideração é acerca da efetividade quanto à segurança jurídica e consistência econômica que se presta o capital social constituído — integral ou parcialmente — por Criptoativos frente a terceiros e seus stakeholders. Isso porque, relembre-se, o capital social tem finalidade assecuratória, consistente na representação de garantia econômica quanto ao cumprimento dos deveres e obrigações de uma sociedade empresária frente à credores e terceiros, de modo ser a liquidez desses ativos um ponto primaz a ser considerado no contexto da sua utilização.
Dessa forma, entende-se que o posicionamento exarado pelo DREI, por meio do Ofício Circular SEI nº 4081/2020/ME, é vanguardista e representa avanço substancial no tocante ao tema dos criptoativos, não obstante, ainda há desafios a se enfrentar.