Confira os principais argumentos apresentados pelos Ministros do STF
O Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou, nesta última quinta-feira, dia 24/03/2022, um conjunto de três ações diretas de inconstitucionalidade (“ADI”) que questionam o fim do voto de qualidade para desempatar julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), prevista no Decreto nº 70.235/1972, na redação da Lei nº 11.941/2009. O órgão, ligado ao Ministério da Economia, é responsável pelo julgamento administrativo em segunda instância de recursos de contribuintes notificados pela fiscalização tributária na esfera federal.
Na ADI nº 6.399, apresentada pela Procuradoria-Geral da República, defende-se que o chamado “voto de minerva”, à favor do Fisco, constitui-se, critério legítimo, proporcional e razoável para a solução de impasses em julgamentos de processos administrativos tributários e ataca o art. 28 da Lei 13.988, de 14.4.2020, a qual dispõe sobre requisitos para a transação resolutiva de litígios relativos a cobrança de créditos da Fazenda Pública federal. O dispositivo inseriu o art. 19-E na Lei 10.522, de 19.7.2002, que “dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais e dá outras providências”. Eis o teor da norma questionada:
Lei 13.988/2020 CAPÍTULO V DAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS
Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E:
“Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
A tese central defendida na ação é a de inconstitucionalidade formal, por vício no processo legislativo, em decorrência da inserção, em lei de conversão de medida provisória, de matéria de iniciativa reservada e sem pertinência temática com o texto originário, por meio de emenda parlamentar, violando os arts. 1º, caput e parágrafo único, 2º, caput, 61, § 1º, II, “e”, e 84, VI, da Constituição Federal.
Já na ADI nº .6403, do Partido Socialista Brasileiro (“PSB”), o processo legislativo que deu origem à supracitada norma violou diretamente os seguintes dispositivos: artigo 1°, parágrafo único (princípio democrático), artigo 2°, caput (separação de poderes), artigo 5°, inciso LIV (devido processo legal), artigo 59, parágrafo único (processo legislativo), artigo 84, inciso VI, alínea “a” (tema de iniciativa exclusiva do Presidente da República), artigo 146, inciso III (reserva de lei complementar), todos da Constituição Federal, além do artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Por seu turno, segundo os autores da ADI, a inconstitucionalidade material do dispositivo decorre da violação direta ao artigo 1°, inciso I (soberania), artigo 37, caput (legalidade e impessoalidade) e incisos XVIII e XXII (administração tributária); artigo 5° incisos XXXV (inafastabilidade jurisdicional), XXXVI (segurança jurídica) e LIV (devido processo legal substantivo), todos da Constituição Federal.
Em peça assinada pelo ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, a modificação do desenho institucional do órgão, que teria como consequências “severas deformidades ao sistema jurídico tributário-financeiro nacional”.
Isso porque o fim do voto de qualidade e a atribuição automática pró-contribuinte aos casos que terminem empatados dão peso maior ao polo da esfera privada. Segundo o PSB, a prerrogativa decisória ao Fisco não significa autoritarismo ou falta de igualdade. Principalmente relacionado a órgão estratégico de uma das mais importantes atividades do Estado: a tributação.
“O fim do voto de qualidade revela considerável distorção a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, mais especificamente a soberania (artigo 1°, inciso I, da CFRB/88). Isso porque, ao fim, não mais cabe ao Estado, por meio de seus representantes, decidir sobre a exigência de seus tributos, mas sim ao sujeito passivo nas autuações, qual seja, o particular contribuinte”, aponta a peça.
O partido ainda defende que, nos julgamentos do Carf, o empate não traduz dúvida do colegiado, mas “ausência de formação de uma maioria sobre determinada tese, o que será suplantado pelo voto do presidente do órgão julgador”. Além disso, nada impede o voto do presidente de beneficiar o contribuinte.
“O que importa, portanto, é a manutenção da prevalência pública do órgão, do que resulta a presunção de legitimidade do ato administrativo, de modo que a modificação subverte a lógica do regime jurídico de direito público, fixando uma espécie de presunção de parcialidade do ato estatal”, resume o pedido.
Finalmente, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), na ADI nº 6415, sustenta que a extinção do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) vai acarretar perda imensurável de arrecadação para os cofres públicos. A medida implicaria, inclusive, em possível carência de recursos para o combate da epidemia do coronavírus.
A tese jurídica veiculada na presente ação centra-se na inconstitucionalidade formal e material do art. 28 da Lei nº 13.988/20, que inseriu o art. 19-E na Lei nº 10.522/02, em razão, basicamente, da violação: (i) ao Princípio Democrático e ao Devido Processo Legislativo (art. 1º, caput e parágrafo único; art. 5º, caput e LIV; art. 62, caput e §9º, da Constituição Federal), eis que o dispositivo impugnado resultou de emenda parlamentar apresentada após a emissão de parecer pela Comissão Mista, sem qualquer relação de pertinência com a Medida Provisória nº 899, de 16 de outubro de 2019, que lhe deu origem; (ii) à presunção de legitimidade do ato administrativo, como expressão do Princípio da Legalidade a que se sujeita a Administração Pública (art. 37, caput, da Constituição Federal), ao determinar o encerramento e a resolução do litígio administrativo a favor do contribuinte, em caso de empate no julgamento; e (iii) ao princípio constitucional implícito da prevalência do interesse público sobre o privado, que decorre da emanação da indisponibilidade do tributo e do princípio republicano (art. 1º da Constituição Federal).
Desses argumentos, o principal é aquele relativo à pertinência temática. Nessa esteira, foi que o Relator, Min. Marco Aurélio, votou pela inconstitucionalidade pelo vício formal. Apesar de rechaçar uma série de argumentos quanto a outros vícios do processo legislativo, considerou que, durante seu trâmite, teria sido incluído um dispositivo tratando de uma outra temática, o então “contrabando legislativo” ou “jabuti”.
De outro lado, o Min. Luís Roberto Barroso abriu divergência, entendendo pela constitucionalidade, pontuando que haveria dúvida razoável sobre a abrangência da pertinência temática, sendo esse um tema nebuloso, conceito jurídico ainda indeterminado. Quanto aos demais vícios no processo legislativo, seriam impertinentes, pois a emenda foi analisada e devidamente votada, nada tendo sido infiltrado de forma sorrateira.
Sobre tal perspectiva, ao verificar a existência de pertinência temática é importante ter em mente a tecitura de um fio condutor de raciocínio, posto que, em consonância com o art. 156, incisos III e IX do CTN, tanto a transação tributária como a decisão administrativa irreformável são causas de extinção do crédito tributário. Conclui-se, desse modo, haver a necessária pertinência temática e consequente constitucionalidade do preceito legal.
Outro ponto sobre o qual o Min. Barroso jogou luz foi a própria previsão do voto de qualidade do CARF, do modo como vinha sendo feito, em que o presidente da turma, representante do fisco, vota duas vezes, e isso feito de forma reiterada, feriria a ampla defesa e o contraditório, seria de questionável constitucionalidade.
Prosseguindo em sua fundamentação, alega o Min. Barroso que: não é objeto dessa discussão examinarmos se era constitucional o voto de qualidade, mas o voto tem uma constitucionalidade duvidosa, “e no caso presente, todavia considero ainda mais relevantes as dúvidas quanto a constitucionalidade da admissão ampla do voto de qualidade nos julgamentos do CARF. Declarar a inconstitucionalidade formal do art. 19-E da lei 10.522/2002 implicaria fazer repristinar norma de duvidosa constitucionalidade material”(BARROSO, 2021).
Bem assim, deu a entender que há um viés no olhar sobre a inconstitucionalidade na forma como vinha sendo exercido o voto de qualidade. Então essa nova norma passa a restaurar a paridade de armas e a isonomia no trâmite do processo administrativo.
Seguindo a linha de raciocínio, a tese proposta pelo Min. Barroso prevê que é constitucional o dispositivo que estampa o fim do voto de qualidade, ressalvado à Fazenda Pública o direito de ir ao judiciário, em caso restrito à hipótese de o voto de qualidade lhe ser desfavorável.
Na sequência, acompanharam o voto do Min. Barros, o Ministros Alexandre Moraes e Ricardo Levandovisk, somente opondo-se ao que se relaciona a possibilidade de ingresso posterior pelo Fisco do Poder Judiciário, para discussão dos aspectos materiais da decisão, posto que com o trânsito em julgado do processo administrativo, extingue-se o crédito tributário (156, CTN), sendo, contudo, permitida a discussão em caso de vício formal que macule a decisão do CARF. Também seguiram o entendimento pela improcedência das ações, os ministros Fachin e Cármen Lúcia. O ministro Nunes Marques pediu vista, suspendendo o julgamento.
De toda sorte, é mais um passo no sentido favorável aos contribuintes.
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil