Mudança de entendimento na CVM: conflito de interesses no exercício do direito de voto de acionista controlador deve ser verificado após a deliberação em assembleia-geral

No dia 16.08.2022, foi iniciada pelo colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) a sessão de julgamento do processo administrativo sancionador (“PAS”) nº 19957.003175/2020-50, o qual reacende a polêmica e traz consigo a controvérsia relativa à escolha do critério formal ou do critério substancial para determinar a existência ou não do conflito de interesses no exercício do direito de voto em sociedades anônimas.

Resumidamente, a reflexão central é antiga e se refere à interpretação do art. 115, §1º, da Lei nº 6.404/1976 (“LSA”), no qual são previstas regras específicas aplicáveis às deliberações dos acionistas em Assembleia Geral (“AG”) sobre (i) o laudo de avaliação  de  bens  utilizados  para integralização do capital social; (ii) a aprovação de suas contas como administrador; (iii) matérias que possam beneficiá-los de modo particular; e (iv) temas em que tenham interesses conflitantes com os da companhia.

No caso dos itens (i) e (ii) (laudo de avaliação e aprovação de contas), trata-se de hipóteses de impedimento prévio, nas quais o acionista, de antemão, não pode exercer seu direito de voto na AG. Como defendido de forma uníssona pela doutrina e jurisprudência, a lei elencou nominalmente as  matérias  específicas  que carregam consigo, de forma intrínseca, uma incompatibilidade absoluta para que o exercício do direito de voto possa ocorrer de forma regular. São matérias objetivas e diretas, as quais, via de regra, podem ser aplicadas aos mais variados casos concretos sem margem para dúvidas ou desafios de ordem prática.

Já no caso dos itens (iii) e (iv) (benefício particular e interesse conflitante com o da companhia), a doutrina e jurisprudência se dividem com relação à análise do dispositivo legal.

De um lado, pelo critério formal, entende-se que diante de uma situação de potencial conflito de interesses, o acionista está proibido de exercer o direito de voto na matéria submetida à AG. De outro lado, pelo critério substancial, admite-se que em casos de potencial conflito de interesses o acionista exerça o direito de voto e, após a análise material do caso concreto, em se verificando que o voto foi exercido em violação ao interesse social, aplicar-se-ão os remédios previstos no artigo 115, §4º, da Lei nº 6.404/1976.

Por sucessivas vezes, a questão foi submetida ao órgão regulador, que entendeu, reiteradamente, pela adoção do critério formal. Situação distinta se verifica agora, no PAS em comento. Em decisão proferida na última terça-feira, o Relator, Sr. Diretor Alexandre Rangel, afirmou que “para a configuração do exercício abusivo do direito de voto, […], o elemento da intenção do acionista em causar dano ou obter vantagem indevida ocupa lugar de destaque para a identificação da irregularidade. No voto proferido pelo acionista, é preciso que exista a finalidade, o objetivo ou nas palavras da lei (i) ‘o fim de causar dano à companhia ou aos acionistas’; ou (ii) o intuito de ‘obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas’.

Seu entendimento foi acompanhado pelo Presidente da CVM, Sr. João Pedro Nascimento, para o qual o “art. 115, §1°, da Lei n° 6.404/1976 não proíbe o acionista previamente de votar nos  casos  em  que  supostamente  há  conflito  de  interesses,  sendo necessária a análise casuística da substância do voto exercido e o contexto em que o direito de voto se deu para que se pudesse concluir pela regularidade ou não do voto, o que apenas pode ocorrer a posteriori”.

No mesmo sentido, foi a manifestação de voto do Sr. Diretor Otto Lobo, o qual concluiu que “análise histórica e sistemática da LSA, somada aos princípios majoritário e presunção de boa-fé e o fortalecimento dos meios de tutela reparatória dos direitos dos acionistas minoritários no mercado de capitais brasileiro não se coaduna com a adoção de uma análise formal no tocante ao impedimento de voto por acionistas nas hipóteses ora analisadas do §1° do art. 115 da LSA”.

O PSA foi suspenso com voto de vista da Diretora Flávia Perlingeiro, e ainda está também pendente de voto do Diretor João Accioly, este último o qual deve acompanhar o Relator, pelo seu posicionamento de mercado. De toda a forma, a maioria já manifestou pela adoção do critério substancial, em notória mudança no posicionamento. Agora, resta aguardar a sua confirmação e verificar até quando irá perdurar.